8.1.05

Balanço de 2004

Com atraso, propomos aqui uma selecção de acontecimentos de 2004:
Acontecimento Mundial I – Tsunami no Índico
O maremoto da Ásia recordou-nos a fragilidade da existência, engolindo quer os pobres habitantes da Indonésia ou do Sri Lanka quer os ricos e sofisticados turistas de Phuket ou das ilhas Phi-Phi… Sem um culpado nem um responsável pela mortandade, a violência da natureza relembra-nos a precariedade da vida: podemos ter anseios independentistas em Banda-Aceh, podemos ter segurança social sofisticada como os suecos… e tudo isso se torna irrelevante em dois minutos que mudam milhões de existências.
Irmanados no sofrimento, acordámos, por momentos, para uma realidade de cooperação em que todas as vontades (as dos Estados, as da sociedade civil, as das instâncias internacionais) souberam depor a retórica ideológica e concentrar-se, prescindindo de direitos alfandegários e de espaços vitais, em quem necessita. Por dias acreditámos que é possível edificar, com confiança mútua, a civilização do amor.

Acontecimento Mundial II – Reeleição de Bush
[N.B.: este não é um post a favor de Bush nem da Guerra no Iraque. Infelizmente, o maniqueísmo reinante leva-nos a ter que começar por estas notas.]
Agrade ou não, a reeleição de Bush é uma afirmação de clara oposição aos discursos vanguardistas próprios do socialismo. É uma eleição das pessoas reais, com problemas reais, que se assustam com os grandes planos de governo ditos modernos (planos que, afinal, lhes iriam sair do bolso). É uma eleição das pessoas que desconfiam do peso excessivo do Estado e sabem que a suposta neutralidade do poder é já um a tomada de posição. É uma eleição de pessoas que sabem que na resolução dos grandes problemas estão os pequenos pelotões
Do mesmo modo que muitos votaram em Kerry, apesar de Kerry, contra Bush e o temor dos neocons, também muitos outros não sobrou alternativa senão reeleger Bush, apesar de Bush, contra Kerry e as suas vanguardas.

Acontecimento Europeu I – 11 de Março
Quando Madrid acordou ao som das Bombas de Atocha, a Europa entendeu que não estava imune ao terrorismo. Mas que aprendeu com isso? Infelizmente, parece que aprendeu a ceder. Zapatero mostrou, do pior modo, como era fácil ceder às pressões do terrorismo internacional faltando aos compromissos externos do seu país e retirando as tropas do Iraque (facto que até se poderia aceitar) e do Afeganistão (facto que é absolutamente inaceitável).
O acontecimento é classificado como europeu – e não como mundial – porque suscitou uma reacção tipicamente europeia, centrada no mito da Europa pacífica (à custa, diga-se em boa verdade, da cobertura militar dos EUA) e na política de curto prazo. Se cede aos árabes, porque não ceder aos bascos, catalães e galegos… Talvez depois haja um Aznar que venha debelar o terrorismo... Ou talvez depois seja tarde demais para evitar a balcanização da Europa.

Acontecimento Europeu II – O Caso Buttiglionne
Sobre este assunto, já muito se escreveu nas Catacumbas. Ele foi, aliás, o móbil que lançou um projecto já há muito albergado. Nem que fosse por fazer sair muitos cristãos da inércia, a rejeição de Buttiglionne para Comissário Europeu foi dos tais acontecimentos que, parecendo mau, acabou por provocar grandes bens.

Acontecimento Nacional I – A dissolução da Assembleia da República
Quando Jorge Sampaio decidiu não dissolver a Assembleia da República em Julho apenas pecou por tardar na decisão. E ao tardar, deixando o país pendente da sua decisão, reforçou o papel do magistrado em vez de reforçar o papel da magistratura. Por isso pode facilmente, em Dezembro, assumir como natural a decisão de dissolver um parlamento com uma maioria absoluta disposta a apoiar o Governo.
Numa perspectiva de curto prazo, ao dissolver a Assembleia Sampaio garante a estabilidade ao dispensar um governo que se estava a tornar caótico… Não mais caótico que os governos de Guterres, é certo, mas mais desastrado na sua articulação e, principalmente, na sua imagem.
Mas numa perspectiva de longo prazo, Sampaio abre um precedente gravíssimo ao assumir que a maioria presidencial pode dissolver uma assembleia com maioria absoluta sem motivo grave. Que faria, depois disto, Mário Soares perante as maiorias de Cavaco Silva? Que fará o próximo Presidente da República quando o partido do governo sofrer uma derrota em eleições intercalares? Que fará um Presidente da República se, num mesmo instante, se juntarem os estudantes contra as propinas e contra as provas globais, os cidadãos auto-mobilizados contra as portagens na ponte, na CREL e nas auto-estradas do Oeste, os sindicatos a pedir dinheiro para empresas que não dão lucro pela baixa produtividade dos trabalhadores (e dos gestores), os banqueiros a pedir para não pagar o IRC, a associação dos moradores em casas alugadas a cair por maldade dos senhorios a quem pagam € 1,5 de renda mensal desde 1948… Em vez de reforçar a estabilidade, é provável que o Presidente da República tenha, afinal, aberto a caixa de Pandora de todas as instabilidades futuras.

Acontecimento Nacional II – Mais duas derrotas do aborto
A militância pró-aborto dos partidos favoritos para as próximas eleições levará a que talvez 2005 venha a ser o ano da liberalização. Mas o que é significativo é como o fundamentalismo pró-abortista de 2004 revelou pouca preocupação com as mulheres: PS, PCP e BE lançaram a questão em Janeiro para fazer cair o governo de Durão; e apadrinham o barco do aborto em Setembro para fazer cair o governo de Santana… Entretanto, quem ficou a apoiar as mulheres com dificuldades são as dezenas de voluntários (talvez centenas), que dão do seu tempo para apoiar as diversas iniciativas de alternativa ao aborto: linhas de atendimento a mulheres grávidas; centros de apoio à maternidade adolescente; casas de acolhimento de crianças que não podem ser entregues às famílias mas cujas mães não quiseram abortar; acções de financiamento dessas iniciativas; fomento do emprego de mães com poucos recursos… Quando o aborto for liberalizado, essas pessoas continuarão as suas iniciativas, para que ninguém possa dizer: eu abortei porque não encontrei que me desse a mão!

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