5.2.06

Liberdade e "sentidos únicos"

A Liberdade é, provavelmente, um dos mais importantes conceitos cristãos! No final de um mundo antigo, cuja religião (e, portanto, a vida) era marcada pela ideia do fado, Agostinho de Hipona, na senda de uma tradição iniciada nos Evangelhos e nos textos paulinos, afirmou que o homem não está condenado pelo destino, mas dispõe de si próprio na ordenação dos meios de que se serve para atingir os seus fins. Esta génese do conceito de liberdade marcou-o ao longo de toda a história posterior até que o racionalismo iluminado e os irracionalismos que se lhe seguiram substituíram a indeterminação na escolha de meios por indeterminação na escolha dos fins. No entanto, alguns âmbitos relembram-nos que a liberdade é limitada: eu não sou livre de criar um círculo quadrado; do mesmo modo, e seguindo C. S. Lewis, eu não sou livre de criar uma nova cor primária. Por mais voltas que dê, encontro sempre a minha liberdade limitada pela minha natureza. O problema dos limites da liberdade coloca-se, portanto, não tanto quanto à existência, mas quanto à sua localização: se eu conseguisse descrever, sem ambiguidades, a natureza, conheceria os limites exactos da minha liberdade. No entanto, como não consigo descrever com exactidão esses limites, estabeleço balizas amplas dentro das quais reconheço um espaço de liberdade bem mais vasto que o da minha acção pessoal: se, por qualquer razão, acho que algo é de um modo determinado, sei que não tem que ser exactamente visto do mesmo modo por todos os outros, reconhecendo-lhes todo o direito para dissentir e actuar de modo contrário ao meu. Mais ainda: eu reconheço ainda que, em ordem a um bem maior, devo tolerar o mal objectivo de um determinado modo de pensar. Sendo cristão, reconheço que há muitos modos de viver a fé, e respeito todos, mesmo aqueles que me parecem mais extravagantes; e tolero que outros vivam outras religiões porque a alternativa seria a violência. Ou então, como português, tenho uma ideia sobre a política do meu país, sem com isso pôr em causa as ideias dos partidos concorrentes do campo democrático. Além disso, tolero os extremistas da esquerda ou da direita, na medida em que a sua acção não ponha em perigo os direitos fundamentais do meu país. Ou seja: respeito os que estão dentro dos limites da liberdade e tolero os que estão fora desses limites. E tolero-os não por respeitar as suas ideias mas, fundamentalmente, por respeitar as suas pessoas.
Quanto aos cartoons representando Maomé, eles foram aqui referidos antes de surgirem em força na blogosfera. Desde logo, referi-os sem os publicar, condenando as reacções exorbitantes de diversos países muçulmanos. De facto, e de acordo com as razões que acima referi, não considero que tenha liberdade para publicar aqui tudo o que sei! Tenho direito de publicar aqui aspectos da vida pessoal de figuras públicas? Penso que não! Mesmo se isso aumentasse o número dos meus leitores? Mesmo assim, não! Tenho direito a enxovalhar símbolos sagrados de uma qualquer religião? Penso que não!
Eu não gostei de que o Amoreiras usasse o Menino Jesus numa couve como publicidade natalícia; ou que a Bennetton fizesse publicidade com um padre a beijar uma freira; ou que que o Herman José satirizasse a Última Ceia: não havia, em nenhum dos casos, motivo nenhum que justificasse esses usos abusivos dos sinais da minha religião. Do mesmo modo, achei abusivos (e recusei-me a ver) determinados episódios da contra-informação, como os que ridicularizaram a orelha de Sousa Franco ou os que apresentaram uma imagem obesa e narcotizada da deputada comunista Odete Santos.
Quando me invocarem, em defesa de qualquer destes factos, a liberdade de expressão, creio que teria uma boa mão–cheia de liberdades para contra-argumentar: liberdade religiosa, direito ao bom-nome, direito à privacidade, etc… Além disso, não deixa de ser curioso que muitos dos paladinos da liberdade de expressão tenham a memória curta, esquecendo que. ainda não há muitas semanas, um grupo de euro-deputados pró aborto chegou à agressão de outros euro-deputados que promoveram uma exposição em que se comparava o aborto ao holocausto: os defensores da vida não têm direito à liberdade de expressão… E na semana passada, também no Parlamento Europeu, foi dado um passo significativo na criminalização de quem discordar do casamento gay, sob o apodo de homófobo. Em Portugal, o Pe. Serras Pereira foi condenado em tribunal por dizer que a IPPF (promotora do aborto a nível mundial) era uma organização serial killer; e houve também uma tentativa judicial para calar o Pe. Lereno por ter apelado ao boicote dos partidos que promovessem o aborto, o divórcio ou o casamento gay.
Assim, o que acima disse é válido para todos! A liberdade de expressão não pode ser entendida em sentido único, ou seja, no sentido de liberdade de expressão dos progressistas. E o que disse sobre a responsabilidade também é válido para todos.
O que me parece grave com os cartoons da Dinamarca é o facto de terem dado origem a uma crise perfeitamente evitável e estéril. Evitável porque assenta numa avaliação simplista do islamismo: tal como aconteceu no mundo árabe, em que se avaliou a Dinamarca por um dos seus jornais, também os cartoons tomavam a parte pelo todo, pondo a ridículo os muçulmanos a partir da ridicularização da sua figura sagrada. Estéril, porque muito pouco se ganhou com a publicação das imagens, e talvez se tenha perdido algo.
Finalmente: uma vez cometido o excesso, gerou-se a reacção da outra parte, reacção brutal e absolutamente desproporcionada, como reportaram as imagens que chegaram de diversos países árabes. Perante isso, não creio dever alterar nada do que aqui foi escrito, antes o reafirmo. No entanto, reafirmo também que a reacção foi absolutamente desproporcionada, revelando as diferenças significativas entre a liberdade que ainda temos no Ocidente e o fanatismo islâmico. Por isso, e em última análise, confrontado com a violência perante o erro, não posso senão ficar do lado da Dinamarca!
Quando terminava este texto, tive conhecimento deste comunicado da Santa Sé, publicado no Sábado, que me parece confirmar o que aqui escrevi.

2 Comentário(s):

Anonymous Anónimo escreveu...

Concordo com praticamente tudo o que refere neste post, pois resume bem que a vida em sociedade, e em concreto numa sociedade global, deve ser uma coexistência saudável de liberdades e não uma coexistência patológica de egoísmos.

Contudo, não consigo tomar partido nesta polémica, apesar de a magnitude do abuso do jornal dinamarquês não ser tão "violento" como a reacção dos países árabes. Ambas as partes procederam mal, e isso impede-me de me colocar ao lado de qualquer delas.

11 de fevereiro de 2006 às 23:52  
Blogger Pedro F. escreveu...

Agradeço o comentário, que já tinha suscitado perplexidades semelhantes em outras pessoas. Por isso escrevi num outro post (Matizes, consideração e sugestões):
"se não posso aprovar o abuso da liberdade de expressão nos países ocidentais, não tenho dúvidas em confiar que o Estado de Direito é uma defesa bem melhor face a esse abuso do que as teocracias islâmicas."
O meu apoio à Dinamarca resume-se ao aopoio ao Estado de Direito.

12 de fevereiro de 2006 às 10:59  

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