3.5.05

Ratzinger, a Igreja e a pena de morte

Entusiasmaram-se os media em encontrar as fraquezas do novo Papa e eis que começam a citar o então Cardeal Ratzinger:
Quando a pena de morte é legal, o que se faz é condenar um indivíduo que cometeu um delito comprovado de extrema gravidade, e que, além disso, constitui um perigo para a paz social; isto é: castiga-se um culpado. No aborto, pelo contrário, aplica-se a pena de morte a um inocente.
(O Sal da Terra, tradução minha da edição castelhana, p. 220)

A partir daqui surgiu a ideia peregrina de que o Papa é a favor da pena de morte! Esqueceram-se muitos comentadores do contexto (oh, esse chato que tem o poder de destruir qualquer argumento). Ora, o contexto em que surge a frase era a resposta a uma questão. E a questão não era (como tantos terão pensado): o que acha da pena de morte? Ou: deve admitir-se a pena de morte? A questão era saber porque razão a Igreja condena o aborto e tolera a pena de morte. Ratzinger começou a responder ao que lhe foi pedido afirmando que são duas coisas totalmente diferentes, que não admitem comparação. Logo, a discussão deveria morrer aqui! Mas alguns insistiram em comparar (citando Caetano Veloso: Tanto espírito no feto e nenhum no marginal).

Antes de prosseguir só gostava de levantar uma questão: estarão os críticos do Papa dispostos a levar até ao fim a sua crítica? Isto é: se a lógica anti-aborto deveria levar à condenação da pena de morte, não deveria a condenação da pena de morte levar, por maioria de razão, à recusa do aborto?

A resposta de Ratzinger enquadra-se no pensamento da tradição católica, expresso no Catecismo: a pena de morte surge entre os pontos referidos ao homicídio, enquadrada nas situações de legítima defesa. Do mesmo modo que a moral individual não culpabiliza uma acção de duplo efeito que tem por objectivo directo a defesa proporcionada, mesmo que conduza à morte do agressor, a moral social reconhece ao Estado o direito de, tendo por objectivo primeiro a legítima defesa da comunidade, realizar uma condenação à morte.

O problema que se coloca é o de saber em que medida pode um Estado, que teve capacidade para capturar e julgar um determinado indivíduo, afirmar que não tem capacidade para neutralizar a sua acção. Foi este problema que levou João Paulo II a afirmar que o aperfeiçoamento dos sistemas penais torna os casos de pena de morte muito raros, senão mesmo praticamente inexistentes! (cf. Evangelium Vitae, n.º 65).

A doutrina da Igreja não promove a pena de morte. Bem pelo contrário: veja-se o texto que João Paulo II dirigiu ao Conselho Europeu, por ocasião do 50º aniversário da assinatura da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Mas, numa atitude sensata, não nega que possam surgir situações em que ela seja a única solução. Voltando a pegar nos argumentos dos militantes pró-aborto, é muito frequente ouvir dizer que ninguém é a favor do aborto, mas eu há casos em que… Será que aceitarão a justificação de que a Igreja não é a favor da pena de morte, mas pode haver casos em que…

Esses casos não são os de um Bin Laden qualquer! São as situações em que a ordem pública esteja seriamente ameaçada e as instituições penais ejam incapazes de garantir o cumprimento de outra pena. Por isso, não se pode defender, à luz do Catecismo, a re-introdução da pena de morte no ordenamento jurídico português. Do mesmo modo, não me parece que o Catecismo justifique a existência de pena de morte nos EUA. Aliás, a pena de morte não está prevista no ordenamento penal do Estado da Cidade do Vaticano. O Catecismo da Igreja Católica não faz uma excepção cultural, ao estilo daquela que o Parlamento português aprovou para os touros de morte em Barrancos. Prevê é que, em determinadas circunstâncias históricas, poderá não haver alternativa. Afinal, é a mesma atitude sensata que levou os teólogos jesuítas da era moderna a defender a direito à revolta e ao tiranicídio!

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