Revisionismo?
Eduardo Prado Coelho escrevia, ontem, sobre Paul Ricoeur. A certa altura dizia:
Era um homem de esquerda, [...] Mas Maio de 68 surpreende-o como reitor em Nanterre e foi nessa altura alvo de vexames inqualificáveis e de crueldades que de esquerda nada tinham. De qualquer modo, o episódio traumatizou-o profundamente.
(Eduardo Prado Coelho, in Público, 24.05.2005)
Mais que o dito sobre Ricoeur, chamou-me a atenção a invenção de uma separação entre o Maio de 68 e os seus excessos. Se calhar, esses vexames e crueldades são desvios reaccionários de agentes da direita infiltrados na estrutura revolucionária a fim de a desacreditar? Ou talvez Prado Coelho queira contradizer a história, afastando a ideia de que a alienação das massas não pode desenvolver-se à sobra das árvores da liberdade que a esquerda plantou...
Espanta-me, porque sempre achei que Prado Coelho seria capaz de uma resposta menos simplista que o duplipensar de Orwell! Ou talvez a sua argúcia se deva, afinal, a uma extrema habilidade na prática da novilíngua ao longo dos anos!
A questão não é pessoal: eu não sou daqueles que não lêem Prado Coelho por princípio (como, aliás, se nota). Em ocasiões acho-o divertido e, até, brilhante (como quando critica o João César das Neves recorrendo apenas a citações do visado). O problema é bem mais vasto, e revela o poder de uma esquerda que recusa, reiteradamente, as suas responsabilidades no mundo presente. Tem, como costuma dizer-se, a faca e o queijo na mão: consagra Ricoeur ou João Paulo II quando lhe agradam, expurga os seus excessos como se nada tivessem a ver com ela. Dança entre a obsessão do défice e o aumento dos impostos com a naturalidade com que se muda de camisa.
Não quero, com isto, afirmar uma superioridade moral da não-esquerda! Quero, isso sim, reafirmar que, como projecto que aspira a programar a improgramável liberdade humana, tem implícitas contradições que só serão sanadas por piruetas comoesta, de pretender que o Maio de 68, afinal, só foi de esquerda no que teve de bom!
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