20.11.05

A França para além da demografia

Num artigo publicado no Diário Económico, Rui Ramos descreve os tumultos das últimas semanas em França como mais uma crise dinástica do velho gaullismo : tal como o Maio de 68 se poderia resumir, politicamente, à luta de poder entre De Gaulle e Pompidou, também a recente agitação na banlieu parisiense se poderia resumir, politicamente, à luta entre Chirac/Villepin e Sarkozy. Confesso que me apetece subscrever tal teoria. Não tanto por concordar com ela, mas por desejar que ela seja verdadeira. Se assim for, podemos concluir calmamente, comom Rui Ramos: Se tudo correr bem, dentro de uns anos, o herdeiro do Presidente Sarkozy há-de voltar a contar com a mocidade dos “banlieues” para fazer valer os seus direitos à sucessão.
O que me leva a discordar de Rui Ramos é o se tudo correr bem, porque penso que nada está a correr bem em França, um país que os dogmas do Estado Social tornaram ingovernável.
O primeiro problema é de ordem filosófica: a França aspira ao paraíso na terra. Quem não aspira? Também os teóricos do neoliberalismo dirão que o mercado é a melhor solução para a resolução dos problemas da humanidade. Nenhum tem razão! No entanto, os teóricos liberais enfatizaram a ideia de que uma sociedade menos centralizada seria mais rápida na resposta às necessidades dos indivíduos, enquanto um estado centralizador falharia no processamento da informação, por não receber o feedback negativo dos agentes. Este é, para mim (a par da estabilidade das sociedades do Reino Unido e dos EUA), o aspecto mais convincente dos argumentos liberais. A generalidade dos países que, na sequência das revoluções liberais, adoptaram o modelo de estado francês, adoptaram a herança de pensadores como Rousseau ou Voltaire, para os quais toda a verdade sobre o homem tinha sido escondida pela religião, bastando a luz da razão para garantir a felicidade humana. Só que essa razão estava debilitada pela sua arrogância: uma razão tão potente não se compadece com uma verdade que é, como diziam os escolásticos, adequatio rei et intellectus, na qual o intelecto podia falhar. Para a Raison, a verdade é automática, acessível aos iluminados. Por isso é que, apesar de todas as tiranias da história, o século XX foi o mais sangrento de todos os tempos: porque milhões se opunham à luz libertadora da razão dialéctica e ao triunfo da vontade dos melhores.
Em menor escala, obviamente, continuamos a viver o mesmo problema: aspiramos ao paraíso na terra esquecidos de que ele é inacessível, de que a concupiscência empurra o homem para o pecado (sobre o que entendo como pecado, já escrevi aqui há quase um ano).
Os restantes problemas franceses decorrem deste primeiro. A crise demográfica (de que se falou aqui) é outro aspecto do paraíso na terra, bem como toda a aspiração do Estado Social que é, evidentemente, ineficaz.
Por tudo isto, creio que Rui Ramos não tem razão: os distúrbios cíclicos da França têm significado mais do mesmo. Mas os recentes distúrbios, apesar de não serem a revolução islâmica que alguns apontaram no início, mostraram que, dentro de trinta anos, os revoltosos de agora não serão intelectuais de esquerda aburguesados, mas islamitas radicais maioritários em alguns departamentos que vão reclamar a sharia. Talvez na altura lhes tentem explicar o conceito de Estado de Direito… como hoje se pode tentar explicar a um iraniano ou a um saudita!

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