Qualquer semelhança com a realidade será pura coincidência
Considerações deste género não serão inéditas por estas paragens, mas voltaram-me à memória ao folhear os jornais atrasados da semana, quando me deparei com um artigo de opinião de José Vítor Malheiros (se não me engano, o mesmo que disse que em Portugal se lia pouco devido ao frio...).
Ora: este senhor disserta sobre o número de atropelamentos em Lisboa, e mostra-se chocado com o facto de 38% desses atropelamentos acontecerem em passadeiras de peões. Também a mim me choca, e concordo com ele na ideia de que esse número deveria ser 0%. Mas o número revela pouco porque, como o próprio autor indica, seria necessário saber quantos atravessamentos são feitos dentro e fora das passadeiras. Já agora, seria necessario garantir que todas as passadeiras estão bem localizadas, bem sinalizadas e respeitadas por terceiros (contentores de obras, estacionamento indevido, etc). E seria também interessante saber se os peões, ao atravessarem fora das passadeiras, estarão mais conscientes do risco, usando, assim, de maior cautela.
Como nada disto está ao alcance do autor, que tal criar uma teoria? Pois a teoria é a seguinte: há os automobilistas dominadores e os peões-que–atravessam-nas-passadeiras dominados... Os primeiros são maus, e nunca param nas passadeiras ou, se o fazem, é disfarçando o motivo; os segundos são vítimas que, cujos direitos são ignorados pelos dominadores. Mais difícil é a caracterização dos peões-que–atravessam-fora-das-passadeiras, que parecem ser respeitados pelos automobilistas pela audácia que revelam. Ainda estamos a meio do artigo e ficou já patente o delírio do autor: qualquer semelhança entre o a realidade ficou lá para trás, nos primeiros parágrafos, porque ela é muito pouco interessante, se comparada com uma boa teoria.
Fiquei pelo meio do artigo, pelo que não confirmei se, no final, não haveria um disclaimer como nos filmes, dizendo: esta é uma crónica de ficção e qualquer semelhança com a realidade será pura coincidência.
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