9.12.06

A Auto Desacreditação do Governo. O Referendo do Aborto como Paradigma

Creio ser do básico senso comum que o Estado, representado nas pessoas dos nossos ilustres governantes, terá de ser o garante do bem comum. Creio ser ainda mais evidente que, ao garantir o bem comum, o Estado não pode permitir-se criar falsas soluções que o desacreditem. A razão de ser destes dois conceitos, vistas pela negativa, encontram-se no facto de não ser possível a manutenção das estruturas do Estado se ele se contradisser a si mesmo pois, tal situação, iria obviamente levar a um mal-estar generalizado e, em consequência, ou à dissolução da Assembleia da República ou à criação de um regime repressor.
Como o povo português é, por natureza, apático, aceita facilmente o que os governantes lhe impõem sem reclamar verdadeiramente, e muitas vezes sem se aperceber, dos erros básicos de governação a que temos sido sujeitos. Vejamos para isso dois exemplos do actual governo.

1. As trocas de seringas nas prisões. Procurando solucionar o problema da proliferação de doenças como a SIDA ou a Hepatite B nas prisões, o Governo propõe a promoção de um programa, ainda que experimental, de trocas de seringas nas prisões. De facto, a Sida e a Hepatite B são um problema de saúde pública ao qual, nenhum de nós deve ser alheio.

2. A despenalização do aborto. Um dos principais argumentos dos activistas pró-aborto, mais conhecido como interrupção voluntária da gravidez na versão panaceíca, é, e voltemos de novo ao problema de saúde pública, o flagelo do aborto clandestino que faz sofrer tantas mulheres que não podem abortar, perdão, interromper voluntariamente a sua gravidez, acedendo ao sistema nacional de saúde.

Que relação têm estes dois assuntos? Exactamente a da desacreditação do estado numa das suas componentes mais básicas, ou seja, a segurança dos cidadãos.

Vejamos de novo as seringas. O tráfico de droga é proibido pela legislação portuguesa. Nesse sentido, sempre que as forças de segurança tiverem provas da existência de tráfico de droga deverão actuar de forma a fazer cumprir a lei. Ora, se há tráfico de droga nas prisões, locais onde, ao contrário das ruas, a segurança e controlo são extremamente apertados, isso significa obviamente que há uma falha na segurança. Mas, mais grave do que isto, quando o governo fomenta os programas de trocas de seringas, está a demonstrar que é incapaz de criar um sistema seguro contra o tráfico de droga nas prisões. Pior, somos obrigados a pensar que, mais do que uma falha de segurança nas prisões, o que há é corrupção dentro dos serviços prisionais. Eu acredito, contudo, que a maioria dos guardas prisionais são pessoas que levam a sua vida de forma honesta.

E, agora, o aborto clandestino. Se há aborto clandestino, é sinal de que as forças de segurança e os magistrados do ministério público não actuam. Isto porque basta perguntar a muitas das pessoas que conhecemos (eu já fiz a experiência em duas regiões do país) para sabermos onde e quem faz os abortos clandestinos. Por essa razão, se continua a haver elevados números de abortos clandestinos a culpa só pode ser imputada aos magistrados e às forças de segurança porque não aplicam a lei fazendo uma das coisas mais básicas para as quais são pagos: investigando. Em última instância, a culpa é do Governo e da Assembleia da República, os quais deveriam ser os garantes da aplicação da lei.

Se o Governo procura legislar pela regra da descriminalização, aquilo que está a fazer é, antes de mais, a demitir-se das suas funções e, em segundo lugar, está a desacreditar-se a si próprio enquanto autoridade. Se os directores das prisões não são capazes de terminar com o tráfico de droga, não estão a cumprir com um dos seus deveres. Se o Ministro da Justiça vê que os directores das prisões não conseguem cumprir com o seu dever tem de actuar de uma só maneira: procurar as causas da existência de droga nas prisões. E se a culpa for dos guardas ou dos directores, a única coisa que tem a fazer é colocá-los do lado de dentro das grades e meter gente honrada naqueles cargos. Caso contrário, o que o Governo está a fazer é autorizar implicitamente o tráfico de drogas nas prisões, só que acrescentando o bónus generoso da oferta de seringas aos pobres prisioneiros.

No caso do aborto, a acção do Governo e dos grupos pró-abortistas acaba por ser semelhante. Não prende aqueles que executam o aborto clandestino, deixa-os continuar a actuar e, pior ainda, a única coisa que modifica na lei é permitir que as mulheres abortem em qualquer circunstância (desde que até às 10 semanas, obviamente). Ou seja, se o problema está no aborto clandestino, que só é clandestino para quem quer andar de olhos tapados, há que meter na prisão todos esses perpetradores de crimes e colocar as forças de segurança e o ministério público em campo. E se o aborto clandestino é um flagelo público, deverá tornar-se em crime público de forma a que a actuação das autoridades seja semelhante às dos casos de violência doméstica. (E de facto, um marido que obrigue a sua mulher a abortar está a praticar violência doméstica!)

O referendo à despenalização do aborto é, além disso, interessante num outro aspecto. Os grupos pró-aborto, entre eles o Governo, propõem a despenalização do aborto quando realizado em estabelecimento legalmente autorizado. A palavra despenalizar entra em curso para evitar a utilização de um outro termo mais complexo (e perigoso): a descriminalização. O problema que se coloca aos pró-abortistas é o de que a mulher não deve ser penalizada por fazer um aborto. Concordamos todos que, em muitas circunstâncias, as razões que levam ao aborto são suficientemente atenuantes para que a mãe não sofra uma pena pelo acto que praticou. Ora, todo o crime implica obrigatoriamente numa pena que seja compensadora para o lesado. Compete ao responsável pela avaliação do crime (no caso presente um Juiz) aplicar a pena atendendo não só à gravidade do crime como também às circunstâncias em que ele se aplicou e às suas atenuantes. Isto significa que, para o Governo, qualquer mulher que aborte até às 10 semanas em estabelecimento legalmente autorizado é uma criminosa à qual não se imputa pena. Mas não só ela. Serão também criminosos todos aqueles que, fora do quadro legal de 1984/1997, praticam abortos (médicos, enfermeiros, etc.). A vantagem de todas estas pessoas é que passam a ser criminosos sem pena aplicável (o que contraria o tal conceito básico do direito de que todo o crime tem que ter um castigo). Logo, se alguém conhecer um médico que faz um aborto às 9 semanas, por vontade expressa da mãe da criança (que alega somente não estar com a menor paciência para ter um filho), num estabelecimento legalmente autorizado, esse alguém pode chamar o médico de criminoso sem estar a incorrer em calúnia. É que esse médico é um criminoso, dado que o argumento usado pela mãe não se enquadra dentro dos motivos aceites para o aborto nas leis de 84 e 97, só que... um criminoso despenalizado.

Neste sentido, o Governo deveria obrigar a que todos os estabelecimentos de saúde legalmente autorizados enviassem ao tribunal de comarca a que pertencem um documento onde constassem os nomes de todas as pessoas envolvidas em interrupções voluntárias da gravidez feitas fora do quadro legal vigente, ou seja, a lei de 1984/1997. O tribunal encarregar-se-ia, então, de colocar no certificado de registo criminal de cada uma destas pessoas o facto de serem Criminosos Despenalizados – já que nunca, legalmente, deixarão de o ser. Curioso, não é?
Para além desta questão, há uma outra ainda mais interessante. Se o problema está em não levar as mulheres que abortam à prisão, não se compreende porque só as que praticam o aborto em estabelecimento de saúde legalmente autorizado é que são despenalizadas. Coloca-se obviamente a pergunta: então as mulheres que fazem um aborto clandestino podem ser presas? O argumento de que os pró-vida são pessoas horríveis porque querem meter as mulheres que abortam na prisão deixa, então de ser aplicável, já que o próprio Governo é um adepto da penalização dessas mulheres. Se fôssemos fãs da teoria da conspiração, diríamos que quando as clínicas abortistas estivessem a perder dinheiro devido à continuidade do aborto clandestino, iriam começar a forçar o Governo a fazer aplicar a lei e, nessa altura, seria o próprio Estado, através de uma lei referendada com fundamentos hipócritas, a levar a julgamento essas pobres mulheres.

Para terminar, se o Governo não é capaz de fazer cumprir a lei e, para tapar o sol com a peneira, inventa sistemas de fuga que não solucionam nada ou com fundamentação hipócrita, está a causar dano grave ao Estado porque, ao demitir-se das suas funções, não permite que as instituições do Estado actuem de forma correcta. Se o Governo se desautoriza através deste tipo de acções está também a causar dano ao Estado porque, simultaneamente, está a desautorizar o Estado. Donde, se o Governo desautoriza e demite o Estado das suas funções, os seus responsáveis estão a cometer um crime de lesa-pátria.

A nossa conclusão só pode ser uma: dois importantes problemas de saúde pública não passam de dois fundamentais problemas de justiça pública. Ora, sendo a Justiça um dos pilares da democracia e do bom funcionamento das instituições, toda a legislação que a contrarie é antidemocrática e, nessa e noutras acepções, anticonstitucional. Se o Governo cria leis falsas e injustas como estas, e se a Assembleia da República as aprova, ambos estão a ir contra a constituição porque, na Justiça, assenta a segurança dos cidadãos e esta não está a ser correctamente garantida.

1 Comentário(s):

Blogger Ver para crer escreveu...

Concordo com a mensagem.
Aproveito para desejar Boas Festas ao autor deste blog e seus familiares.

20 de dezembro de 2006 às 14:24  

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