11.1.07

O Crime Compensa

Chego a casa depois de um dia de trabalho e um carro está a bloquear o portão. Não dá para entrar. Por sorte tenho um lugar alguns metros mais à frente. E descanso. No entanto, nem todos os que querem entrar têm a mesma sorte: a alternativa é ir deixar o carro muito longe de casa. Tudo isto é um incómodo para quem quer entrar. Mas torna-se verdadeiramente problemático para quem quer sair: só quem tiver um catterpillar na garagem (hábito que me não parece nada frequente) consegue remover um monovolume da frente da sua porta. Só há, portanto, uma solução: chamar a polícia.
Foi o que fiz às 19h00. Quando perguntei se iria demorar muito, disseram-me que havia dois reboques a resolver duas ocorrências, pelo que não deveriam demorar muito. Eu é que deveria esperar, para apresentar a reclamação quando chegasse o reboque.
Como tinha alguns telefonemas para pôr em dia, lá me fui entretendo. Depois, sentei-me no carro, enquanto folheava o número mais recente da Atlântico, à luz ténue de um poste da rua. Entretanto passaram dois guardas de giro, a quem comuniquei o caso: nada podiam fazer, uma vez que eu já tinha chamado o reboque. Disse-lhes que o mais provável era que o dono chegasse antes do reboque, uma vez que eu já estava à espera há mais de meia hora. Nada podiam fazer, pois seriam os agentes do reboque a passar a multa.
Passada uma hora, decidi que a luz da rua era demasiado fraca para ler a Atlântico. Além disso, tinha que aquecer o jantar e arrumar papelada. Desisti de esperar pelo reboque.
Depois de jantar – já passava das 21h15 – espreitei pela janela para confirmar o habitual: o dono teria vindo e levado o carro. Na melhor das hipóteses, não teria deitado imediatamente para o lixo o papel que um dos locatários deixara preso ao limpa pára-brisas, a advertir que tinha estacionado num acesso a uma garagem. Para meu espanto, aí continuava o carro, e estava a chegar um automóvel da polícia. Os polícias ali ficaram, dentro do carro, a olhar, a olhar, a olhar… e preparavam-se para partir quando eu fiz sinal para esperarem. Lá desci à rua, para explicar que tinha sido eu a telefonar. Disseram-me que vinham confirmar se ainda era necessário chamar o reboque e, como eu respondi afirmativamente, pediram-me para esperar a fim de apresentar a reclamação ao rebocador. Eu já tinha esperado 1h30 por um reboque. Depois disso, já tinha passado outra hora: quanto tempo iria ainda esperar? O mais provável seria que o dono chegasse antes do reboque e levasse o carro como se nada tivesse acontecido.
A história normal terminaria aqui. A polícia iria embora, eu desistiria de esperar. O dono chegaria e levaria o carro. Se os rebocadores chegassem antes, comentariam entre si a falta de civismo do gajo que telefona para a polícia e não fica à espera. Se chegassem depois, comentariam a precipitação do gajo que telefona para a polícia por causa de um carro que parou à frente do portão durante um bocadito.
Desta vez, a história acabou de modo diferente. Esvaziei a autoridade do polícia: disse-lhe que não ia esperar mais; que a partir daí iria estacionar à frente dos portões, a contar com a morosidade da polícia; acrescentei à crítica da impunidade dos infractores floreados populistas contra os poderosos; dissertei sobre a injustiça que só se abate sobre os pequenos, já esmagados pelo impostos e pelos salários baixos… Enfim: fomentei a prepotência do agente da autoridade que assim se viu movido a proteger as viúvas, as donzelas em perigo e os órfãos que eu então personalizava.
O teatro resultou: o Sr. agente saiu da viatura, aprumou-se, sacou do bloco e da caneta. Autuou o veículo e pediu-me a identificação, a fim de registar a minha reclamação. Depois, com o ar profissional que aprendeu nas séries americanas, puxou do intercomunicador pela janela aberta e comunicou em código a matrícula da viatura a ser rebocada. Despediu-se e foi à sua vida.
Eu voltei para casa. Pouco antes das 22h00, ouvi o reboque a levar o carro: passadas três horas, a eficácia da polícia tinha resolvido o problema!
Confesso que adornei um pouco a história, que foi bastante mais insípida que o relato. No entanto, asseguro que ela permanece fiel ao ocorrido um destes dias. É algo que se repete frequentemente: desta vez teve um final um bocadito mais justo.

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