O Megafone de Deus
Não sei se terei muito tempo para prosseguir, ao longo desta semana, com estas considerações… De qualquer modo, lanço-me a elas na esperança de perpetuar a intensidade destes dias em que (não por mérito próprio, mas por força das circunstâncias) me encontro no meio de um dos mais belos locais para passar esta Semana Santa.
Há numa das cidades do interior deste país, escondido por uma urbanização de subúrbios, um local extraordinário. Não tem visibilidade nem é conhecido pela maioria dos habitantes da cidade: um cartaz bastante tosco e com letras pequeninas, à entrada de uma estradita de alcatrão coberto de pó, indica o acesso a uma grande casa.
É uma casa de gente inútil: nunca fizeram nada na vida… Bem: alguns fizeram! Tinham os seus trabalhos, as suas famílias, os seus caprichos até que a vida lhes trocou as voltas. Desde então tornaram-se totalmente inúteis. Aliás, dizer que são inúteis é pouco: além de nada produzirem são uma fonte de despesas quer para as suas famílias quer para o Estado, uma vez que aquela casa se mantém com o apoio significativo da Segurança Social. Não só não produzem, como gastam, e gastam bem! Além da alimentação normal de uma pessoa, têm encargos elevadíssimos em medicação, fraldas, camas articuladas, cadeiras de rodas. E como se tudo isto não bastasse, são exigentes: têm que vestir roupa diferente várias vezes ao dia, mudar diariamente a roupa da cama, pedem quem lhes dê a sopa, quem lhes lave os dentes, quem lhes dê banho ou os limpe depois de irem à casa de banho… Isto para já não falar do apoio médico ao domicílio (exigindo frequentes vezes a experiência de especialistas) nem do apoio de terapeutas, fisioterapeutas e uma multidão de empregadas…
Esta casa é, como já se deve imaginar, um centro de apoio a deficientes profundos: nenhum dos habitantes desse centro sobreviveria sem o apoio de alguém: a maior parte não fala, não sabe comer por si, não tem aquilo que nós achamos tão importante: um sentido para a vida! Alguns mal se apercebem de que estão vivos…
Porquê? Porquê o seu sofrimento? Porquê os sofrimentos das sua famílias? Se há um Deus Bom, como explicar estes erros da genética? Bem sei que entrar nestas questões é entrar num dos mais profundos mistérios do Homem: o mistério da dor, que é parte daquele mistério ainda mais profundo que é o mistério do mal! Os teólogos sempre insistiram, no entanto, em que a dor física não é propriamente um mal. Se o mal é a ausência de um bem devido e se Deus permitiu que as pessoas vivessem com deficiências, é porque, nesses casos, a saúde não é um bem devido. Isto é: a pessoa desempenha a sua missão sem, para isso, necessitar de saúde. Isso é evidente em todos aqueles que usamos óculos… No entanto, nesta casa o mistério adensa-se, porque a dor é bem maior que a minha dioptria…
Mistério, sem dúvida… Porque manter essa inutilidade? C. S. Lewis resume, numa frase, um esboço de resposta:
God whispers to us in our pleasures, speaks in our conscience, but shouts in our pains: it is His megaphone to rouse a deaf world.
Neste mundo de surdos, neste mundo em que frequentemente nos centramos em nós próprios, nos nossos quotidianos tantas vezes mesquinhos, estes “inúteis” relembram-nos que há vida fora de nós, que há vida que pede amor… Neste mundo em que há um “consenso alargado” em torno do direito destas pessoas a não nascer, a sua presença incómoda, esbanjadora e “inútil” é um tesouro que só aqueles que os viram sorrir conseguem valorizar devidamente!
1 Comentário(s):
Muitos parabéns!
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