O Megafone de Deus (III)
Ao terceiro dia já nos sentimos experts ao lidar com estas pessoas! As próprias empregadas do centro, que no início temiam a nossa inexperiência, começaram já a confiar um pouco mais em nós. O resultado é mais trabalho, e trabalho cada vez mais complicado… no início, passeávamos os “meninos” e dávamos de comer aos mais fáceis; agora perguntaram-nos se podemos chegar meia hora mais cedo, para ajudar a fazer as camas e, em alguns casos, ajudar na higiene dos utentes. Também já nos mandam dar as refeições aos mais complicados, sendo que o resultado foi a necessidade de dois babetes por utente: um para o próprio e outro para quem lhe dá de comer. Alguns começaram a ajudar também a fisioterapeuta do centro, levando-os para a zona de reabilitação a apoiando os exercícios.
A nossa presença (somos 15 voluntários) altera um pouco as rotinas do centro: por um lado, e apesar da nossa inexperiência, vemos que a nossa ajuda é importante, porque, apesar de haver muitas empregados, o trabalho a realizar é imenso. Por outro lado, notamos que as pessoas que aqui trabalham no dia-a-dia ficam contentes por ver-nos: além de aliviarmos o seu trabalho (não a responsabilidade), a nossa disponibilidade para acompanhar os utentes nas horas mortas, com brincadeiras e canções no pátio do centro, torna o ambiente mais agradável.
Para nós, no entanto, o ambiente ainda é pesado: às vezes custa almoçar logo a seguir a dar o almoço aos “meninos”; e nem sempre é grande o entusiasmo com que, após o café, nos preparamos para enfrentar os rios de baba que correm, abundantes, pelas roupas de alguns. Mas aos poucos vamo-nos entendendo: cada um vai conhecendo as manias de dois ou três, de quem se fica mais “amigo”. Notamos que muitos deles criam laços connosco, que no identificam perfeitamente à nossa chegada, que sabem que uns de nós são mais tolerantes que os outros e que todos nós somos mais tolerantes (ou deverei dizer ingénuos?) que as empregadas…
Hoje, o F. foi repreendido por um dos voluntários, pois estava mal sentado à mesa. Levantou-se e foi pegar numa cadeira, assustando o voluntário, temeu que o objecto voasse na sua direcção. Mas o F. trouxe a cadeira para a mesa e colocou-a no lugar onde o T., que estava a entrar na sala, deveria sentar-se para almoçar. Vamos descobrindo que esta é uma característica do F.: gosta muito de ajudar! Quando o companheiro da mesa acaba a sopa, não faz nada; quando acaba o resto, nada faz; mas quando acaba a fruta, lança as suas mãos tolhidas para o fio que prende o babete do companheiro, começando a puxá-lo. Fico horrorizado com aquela hipótese de estrangulamento e vou a correr na sua direcção dizendo-lhe para estar quieto. Nessa altura, o F volta-se para mim com o seu sorriso desdentado, levanta-se com o babete do companheiro na mão e dirige-se, no o seu passo trôpego, à copa, onde coloca o babete no saco da roupa suja…
O J, ao ver-me entrar, agarra-me pela mão e leva-me ao seu quarto. Abre o armário da sua roupa e tira de lá umas calças, que põe em cima da cama, e fica à espera… de quê? Explica-me depois uma das empregadas que, de vez em quando, gosta de trocar de roupa e, como sabe que as empregadas não lhe fazem o gosto, veio ter comigo. Eu guardo a roupa de novo no armário, e o J. fica triste e agarra-me com imensa força para que eu lhe faça a vontade. Estamos neste impasse quando a mão dele afrouxa a pressão sobre o meu braço e volta a cabeça: ouviu um dos voluntários no corredor e decide tentar a sua sorte com mais alguém…
Pequenas histórias como estas fazem o dia-a-dia da nossa actividade aqui. Quando chegámos, disseram-nos para não termos medo dos deficientes. Então era difícil, pois o seu mundo era um mistério para nós. Passado três dias, penetrámos, ainda que de modo ténue, no mundo de alguns deles. E que alegria quando, no canto da boca de alguma daquelas caras mais fechadas, se nota o ligeiro esboço de um sorriso.
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