16.4.10

Um Ponto de Tolerância

O Governo decidiu, por motivo da visita do Santo Padre a Portugal, conceder tolerância de ponto aos funcionários públicos no próximo dia 13 de Maio. A esta tolerância acrescem-se outras duas parciais, a 12 e 14, respectivamente em Lisboa e Porto e Vila Nova de Gaia.
Algumas vozes se levantaram contra esta decisão do Governo. A Associação Empresarial de Portugal arrogou-se o papel de defensora da economia portuguesa reafirmando os sacrifícios pedidos ao País; a Associação República e Laicidade pede a diversas entidades um “repensar” da decisão em prol da separação entre Estado e Igreja; os sindicalistas dizem que quando todos se queixam dos trabalhadores, não se deveriam dar tolerâncias de ponto; a Confederação da Indústria Portuguesa queixa-se do absentismo e da necessidade de trabalho; etc, etc, etc.

Sejamos breves:
1- Tolerância de ponto significa que, quando declarada, os funcionários por ela abrangida não sofrem qualquer penalização pela sua ausência do local de trabalho como, por exemplo, desconto de tempo de serviço;
2- A tolerância de ponto não obriga ao encerramento dos serviços. Os serviços fecham porque, normalmente, a maioria dos trabalhadores, necessite ou não, decide aproveitar essa benesse dada pela entidade patronal.
3- A tolerância de ponto foi dada por uma entidade patronal (Estado) aos seus trabalhadores (funcionários públicos).

Posto isto, não se compreendem algumas afirmações e comentários que se têm feito ouvir.
1- De facto, não há descriminação positiva por parte do patrão “Estado” face aos trabalhadores do sector privado. Os outros patrões não dão tolerância de ponto porque, pura e simplesmente, não querem, alegando para isso os motivos que entendam justos.
2- As perdas e custos que advenham da tolerância de ponto não serão tão significativas quanto alguns querem fazer crer. Por um lado, três dos principais feriados nacionais calham, durante o ano corrente, ao fim-de-semana: 25 de Abril, 1 de Maio e 15 de Agosto. Feitas as contas, continuamos a ter um saldo positivo de dias 2 de trabalho a mais. Por outro lado, as deslocações levadas a cabo quer pelas pessoas que vão ver o Papa quer por aqueles que aproveitam o fim-de-semana prolongado, trarão benefícios a diversos sectores, como a hotelaria e restauração, por exemplo.
3- Finalmente, é certo que o governo parece beneficiar a Igreja Católica porque dá tolerância de ponto quando vem o Papa mas não a dá quando vem outro responsável religioso. Obviamente que tal argumento é, à partida, falacioso, pois sabemos que há muitas mais pessoas a deslocar-se para ver o Papa do que para ver o Dalai Lama ou o Presidente da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Contudo, se o problema é esse, mostrem a indignação e a têmpera de que são feitos todos os funcionários públicos muçulmanos, judeus, cristãos não católicos, agnósticos, ateus e, sobretudo, os republicanos laicos (e outros) e vão trabalhar para a sua repartição de finanças, o seu tribunal, a sua escola, a sua autarquia, o seu hospital, o seu gabinete no ministério, durante os dias 12 e 14 de manhã e dia 13 todo o dia em vez de aproveitarem para tirar férias e ou ir às compras.

Parabéns, Santo Padre


8.4.10

O nascimento de um facto...

Concordando com o que o Francisco disse no post anterior, acrescentaria apenas que, ao longo das últimas semanas, assistimos à criação de um facto, que assenta em três ideias

1) ao longo da segunda metade do século XX, a Igreja sofreu de um problema anormal de pedofilia.
2) durante esse período, a Igreja teve uma reacção ao problema muito diferente da do resto da sociedade.
3) Joseph Ratzinger / Bento XVI é o expoente dessa reacção.

Qualquer destas afirmações é falsa!

1) o problema (grave na sua essência) não foi, infelizmente, mais grave do que nas restantes instituições coetâneas.
2) também infelizmente, a reacção da Igreja não foi, pelo menos até aos anos 90, essencialmente diferente da das restantes instituições sociais. A Casa Pia de Lisboa é apenas um exemplo de como, frequente e continuadamente, os responsáveis das intituições em que se cometiam crimes de abuso sexual de menores sobrepuseram o bom-nome da instituição à segurança das vítimas.
3) Joseph Ratzinger / Bento XVI foi a figura de proa no percurso que a Igreja fez para lidar de modo adequado com o problema.

Não é que isto me descanse, pois esperava, e acho normal que se espere, uma reacção diferente desde 1950. Mas o facto está criado.

6.4.10

A Pedofilia é um problema da Igreja?

“Traístes a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto deveis responder diante de Deus omnipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos. Perdestes a estima do povo da Irlanda e lançastes vergonha e desonra sobre os vossos irmãos. Quantos de vós sois sacerdotes violastes a santidade do sacramento da Ordem Sagrada, no qual Cristo se torna presente em nós e nas nossas acções. Juntamente com o enorme dano causado às vítimas, foi perpetrado um grande dano à Igreja e à percepção pública do sacerdócio e da vida religiosa.”

Quando li estas palavras com que o Papa Bento XVI se dirigia Aos sacerdotes e religiosos que abusaram dos jovens (Ponto 7 da Carta Pastoral do Santo Padre Bento XVI aos Católicos na Irlanda, de 19 de Março de 2010) não fui capaz de deixar de reparar na sua dureza extrema. Traição, perda de estima, vergonha, desonra, violação do sacramento, dano. Pelo meu ofício, já muitos documentos emanados do Vaticano me passaram pelos olhos (desde alguns da antiguidade a outros mais recentes) e, sem dúvida, foi a primeira vez que senti tanta dureza nas palavras de um pontífice.

Talvez por vergonha alheia e sobretudo por ter a certeza de que há muitos mais sacerdotes que levam uma vida recta e sã, nunca falei muito sobre este tema. Contudo, a recente onda de notícias que têm vindo a lume obrigaram-me a fazer uma pequena e breve (o tempo pouco mais permite) reflexão sobre a pedofilia e a Igreja.

Antes, contudo, gostaria de deixar duas breves palavras prévias.
Em primeiro lugar, não quero que se pense que, com este texto, estou a procurar ilibar a Igreja Católica dos actos dos seus membros ou os elementos da sua hierarquia que não alertaram as autoridades para os crimes de abuso sexual de crianças e jovens. Pelo contrário. Deveriam tê-lo feito e a Carta do Papa aos Católicos na Irlanda diz tudo o que se pode dizer sobre o tema. Algumas das razões para não se terem alertado as autoridades podem, naturalmente, ser compreensíveis. Contudo, não serão facilmente aceitáveis à luz dos ensinamentos da própria Igreja. Nesse sentido, não quero desculpabilizar nada nem ninguém, mas procuro alertar para um problema que é muito mais grave do que o “problema católico” em que, aparentemente, se tornou.

Em segundo lugar uma palavra de pedido pessoal de perdão às Vítimas. Merecem todo o nosso apoio e as nossas orações para que a cruz que cada uma delas carrega com tanta dor seja cada vez mais leve.

Qual a situação da pedofilia na Igreja Norte-Americana?
Conforme é do conhecimento geral, a United States Conference of Catholic Bishops solicitou ao John Jay College of Criminal Studies da City University of New York um estudo sobre a profundidade dos crimes de abuso sexual de crianças e jovens por membros do clero. Usemos este caso por ser, até ao momento, o melhor caracterizado.
Basicamente, os resultados são os seguintes:
4% do clero norte-americano foi alvo de acusações de abuso sexual de crianças e jovens entre 1950 e 2002. Falamos de um total de 4392 clérigos e 10667 vítimas.
A década de 1970 corresponde ao pico de acusações.
55.57% dos acusados só cometeram abusos uma vez. Destes, a maioria, 44.5%, teve relações com jovens entre os 15 e os 17 anos e não são, tecnicamente, considerados pedófilos. 33% destas vítimas eram do sexo feminino, sendo por isso consideradas, também tecnicamente, como relações heterossexuais (o que não significa que não tenham sido abusos).
149 sacerdotes que cometeram crimes mais do que uma vez foram responsáveis por 26% das vítimas. É uma elevada taxa de reincidência dentro de um número muito restrito e num espectro de mais de 50 anos. Contudo, em relação a outros casos de pedofilia, há muito poucos vestígios de crimes em rede, ou seja, os actos são, na sua maioria, individuais, havendo poucos casos de crianças e jovens que sofreram abusos por mais do que um sacerdote.
Antes de 1985, foram reportados 810 casos de abuso sexual dos quais: 85% correspondiam a crimes realizados no próprio ano da denúncia, 10% com 2 anos de atraso, 2,5% dizendo respeito a casos com entre 5 a 3 anos e 2,5% a casos com o máximo de 10 anos. Em 2003, pelo contrário, 10% dos casos denunciados tinham ocorrido no prazo de um ano, 25% entre 2 e 10 anos e os restantes 65% correspondem a crimes com mais de 10 anos. Este dado comprova a diminuição dos comportamentos de abuso após a década de 80.
No final de 2002, a polícia foi informada de 640 casos de abusos (correspondentes a vários anos). Destes, 3% dos acusados foram considerados culpados e 2% foram condenados a prisão. Note-se, aqui, que devido ao facto de alguns casos serem muito antigos, alguns dos perpetradores dos crimes já haviam falecido.
40% dos sacerdotes culpados de abuso sexual de menores foram alvo de tratamento clínico por iniciativa da própria autoridade eclesiástica.
O número de acusações respeitante a 1980 foi de 504, baixando para 28 abusos em 2002. Neste último ano havia um total de 45.713 sacerdotes nos EUA, fazendo com que, estatisticamente, as acusações recaíssem apenas sobre 0.06% do clero. A forte actuação do episcopado Norte Americano levou, como se vê, à redução drástica dos abusos sexuais por membros do clero.

A pedofilia é um problema da Igreja?
Obviamente que não. A Igreja nos EUA teve, pelos diversos dados estatísticos conhecidos, um problema grave relacionado com a pedofilia entre os anos 70 e 80 (principalmente até 1985, altura em que, devido ao conhecimento público de um caso particular, os índices, que já vinham a baixar, se começam a aproximar de valores cada vez mais baixos).
Não há, para outros países, nenhum estudo como o do John Jay College (nomeadamente para a Irlanda, onde o Ryan Report e o Murphy Report são documentos substancialmente diferentes do norte-americano). Mas também não há um estudo semelhante e consistente quer para outras confissões religiosas quer para outros grupos sócio-culturais ou profissionais. Não obstante, Philip Jenkins aponta para valores de abuso sexual de crianças entre 2 e 10 vezes superiores aos dos sacerdotes católicos dentro do clero de confissões protestantes.
Falamos de 4% dos clérigos norte-americanos. Thomas Plante diz que 5% dos professores norte-americanos têm acusações de abusos sexuais de menores. John Hughes informa-nos um dado curioso: 21% dos alunos de uma universidade norte-americana afirmou sentir-se sexualmente atraído por crianças e 7% chegou mesmo a admitir que manteria relações sexuais com crianças se não fossem detectados!
Ainda Thomas Plante informa que, nos EUA, 17% das mulheres e 12% dos homens norte-americanos foram abusados sexualmente. Ryan Hall et. al., informam que entre 40 a 53% dos abusos sexuais a crianças com idades até aos 12 anos são realizados por familiares ou conhecidos das vítimas. Curiosamente, os mesmos autores referem que o número de prisões efectuadas pela polícia é inferior a 33% dos casos de abuso sexual de crianças.

Os dados acima indicados demonstram que a pedofilia não é nem um problema da Igeja nem, tão pouco, um problema do celibato dos sacerdotes católicos. A maioria dos casos acontece em ambiente familiar, por pais e padrastos, por exemplo, e o clero das confissões protestantes não é celibatário. Mais do que um problema religioso, a pedofilia é um problema social grave!
Mais grave, ainda, e nesse sentido John Hughes faz uma análise interessantíssima deste fenómeno, é o facto de haver grupos, inicialmente com origem na Holanda, que procuram a “despenalização” da pedofilia ou a redução da idade limite para se considerar a existência de um “crime de pedofilia” (juridicamente, a pedofilia não é um crime. Utilizo a expressão entre aspas para melhor compreensão). Actualmente é aceite, na generalidade, como “crime de pedofilia” o abuso ou a tentativa de abuso (sob as mais diversas formas) de crianças com menos de 14 anos. Mas há influências quer para que essa idade baixe, quer para que se descriminalize totalmente a pedofilia.
O problema da pedofilia e dos abusos sexuais de menores é, além disso, um “problema recente”. Actos que agora são comummente considerados crime passível de ser denunciado, não o eram há 40 ou 50 anos. Tempos houve em que, não obstante o reconhecimento da ilicitude de determinados actos, não se achava que estes deveriam ser necessariamente levados à justiça, entre outras razões devido à vergonha que recaía sobre a vítima, por exemplo. Infelizmente, a sociedade despertou tarde para este tipo de crimes e, nesse sentido, a análise que eu fiz leva-me a crer que o conhecimento dos abusos sexuais por clérigos norte-americanos terá tido uma forte influência positiva nesse campo. Todavia, as energias contra a pedofilia, mormente as da comunicação social, estão demasiado canalizadas para a crítica à Igreja Católica quando, do meu ponto de vista, deveriam ser conduzidas para o problema social concreto. Um exemplo diferente passa-se com a violência doméstica, onde os grupos de pressão não procuram um alvo concreto num determinado nicho social mas fazem alertas gerais à sociedade. No caso do problema da pedofilia, é óbvio que o ataque está centrado na Igreja Católica e não, por exemplo, em grupos como o North American Man-Boy Love Association, o Childhood Sensuality Circle ou o Dutch Cultural and Recreational Center. Porquê? Cada um tirará as suas conclusões.