Um livro amargo
Why were we led out of the church of our childhood to find the church of our adoption assuming the very forms we disliked?(Evelyn Waugh, cit. em A Bitter Trial, P 43)
Imaginemos agora uma situação inversa: a de quem, criado num ambiente protestante, passando pelo agnosticismo na juventude, se sente atraído pela liturgia e, a partir desta, se abre ao mistério que ela simboliza. E, de repente, a dimensão misteriosa da liturgia é retirada. Foi o que aconteceu com Evelyn Waugh nos últimos anos da sua vida, quando se sucediam reformas e experiências litúrgicas contínuas que viriam a cristalizar no Missal Romano de Paulo VI, publicado em 1969/70.
Waugh, mais que um conservador, era um tradicionalista. O fascínio que nutria pela vida dos aristocratas de entre-guerras ocupava um lugar de peso na sua argumentação conservadora. Por isso, na recolha da correspondência que trocou entre 1964 e 1967 com diversas figuras, em particular com o Cardeal John Heenan, Arcebispo de Westminster (reunida por Scott Reid em A Bitter Trial) não há propriamente nenhum argumento de peso contra a reforma da liturgia: Waugh lamenta o desaparecimento da ritualização, da formalidade, da solenidade aristocrática, da liturgia antiga. No entanto, por baixo da aparência superficial da sua argumentação, há uma vivência profunda de quem está a ver questionado aquilo pelo qual achou valer a pena mudar a existência: a liturgia romana fala de um mistério insondável, de um Deus feito Homem feito Pão que se celebra de modo adequadamente misterioso (e até secreto, no caso das liturgias de vários ritos orientais). Se se esvazia esse sentido do mistério, se se pretende tornar tudo inteligível (oh: o vernáculo!!!), se se abandonam rituais ancestralmente plenos de sentido (como ajoelhar durante o et incarnatus est), a Eucaristia deixa de ser identificada como Presença Real, e passa a simples recordação da vida de um Jesus cuja existência, no fim de contas, até pode ser posta em causa.
Mais interessantes, talvez, que as considerações de Waugh sobre a liturgia, porque se situam a montante dessas considerações, são duas ideias que o autor observa de modo muito crítico: uma delas é o risco de que uma vanguarda clerical se sobreponha ao sensus fidelium; a outra é a identificação dessa vanguarda como voz do laicado, reivindicando um sacerdócio comum que facilmente pode conduzir à redução do sacerdócio ministerial. Típicas apreensões conservadoras, as quais vieram a ser confirmadas pela realidade das décadas subsequentes.
Nas respostas a Waugh, bem como nas cartas pastorais, encontramos um Cardeal Heenan dividido: por um lado, está consciente dos aspectos positivos da reforma; por outro lado, receia o impacto das alterações, principalmente entre os católicos mais velhos e os conversos; sempre, mostra-se publicamente submisso ao magistério, sem com isso deixar de lutar nas sedes próprias para que os que quiserem possam celebrar no rito antigo. O aspecto mais significativo desta atitude é o contraste das cartas pastorais, em que anima os seus fiéis a conhecer e a viver a nova liturgia, com a vigorosa intervenção no Sínodo dos Bispos de 1967, em que alerta com força para os seus aspectos mais problemáticos.
Mais que uma apologia da Missa Tridentina, A Bitter Trial apresenta uma reflexão equilibrada sobre o valor e o significado da liturgia. E apresenta, ao mesmo tempo, o receio sobre as unintended consequences de uma reforma brusca. Como não ter em conta esta opinião quando ela se revela profética, como nas palavras que Heenan dirige ao Sínodo:
If we were to offer them [fathers of families and young men who come regularly to Mass] the kind of cerimony we saw yesterday in the Sistine Chapel (a demonstration of the Normative Mass) we would soon be left with a congregation of mostly women and children.(Cardeal Heenan, cit. em A Bitter Trial, p. 70)