No
Rectângulo, o R. escreveu um
post em que lamentava o Não francês e holandês à “Constituição Europeia”. Lancei, então, dois desafios: que ele esclareça porquê votar “sim” e eu procurarei esclarecer porquê votar “não”!
Antes de prosseguir, gostava de fazer algumas ressalvas:
Em primeiro lugar eu aprecio o projecto europeu. Apesar de algumas ilusões, o percurso da CEE até à EU teve méritos inquestionáveis. O primeiríssimo foi, obviamente, a paz! Alguns “realistas” destacarão a supremacia militar americana como factor dissuasor da violência na Europa. Mas uma boa dose de “idealismo” europeu foi necessária para que se passasse do confronto à cooperação num continente marcado pela divisão ao longo de tantos séculos. O segundo mérito da construção europeia foi a abertura dos mercados. A Europa, graças à progressiva união, viu aparecer um mercado comum que acelerou o desenvolvimento dos estados europeus. O facto de agora se contestar o modelo social forjado ao longo de todos estes anos (sustentado num clima de grande crescimento económico, mas insustentável perante os desafios actuais) não deve fazer esquecer que a criação do mercado comum foi um factor importantíssimo, que os países puderam, ou não, aproveitar.
A segunda ressalva não diz respeito à União Europeia, mas ao nacionalismo: não acredito nas nações como entes sobrenaturais. Elas são entes políticos, isto é, comunidades em que os homens se agrupam com vista a satisfazer as suas necessidades. Logo, é natural encarar a nação ao serviço do Homem, e não o contrário. No entanto, a identidade individual deve muito à cultura da comunidade nacional em que se insere. Por isso uma nação não pode surgir ou desaparecer simplesmente, seja por uma invasão, um decreto, um tratado ou um voto.
Feitas estas ressalvas, passemos ao Tratado Constitucional Europeu (TCE), e às razões pelas quais defendo o Não.
A génese do TCE representa o aspecto mais negativo da construção europeia: a institucionalização da burocracia. Os “chumbos” de que o tratado já foi alvo (e os que ainda o esperam) revelam a arrogância burocrática que achou que bastava um comité de sábios para redigir um documento que se pretendia de carácter fundador. Uma constituição surge, normalmente, num momento crucial da história de um povo. Mas o TCE pretendeu fundar, a partir dos gabinetes, a Europa. (Não por acaso, nesta tentativa de fundar por decreto a nação europeia, o TCE consagra os símbolos da união.)
O TCE é, portanto, na sua génese, um projecto tão ambicioso como as doutrinas do século XVIII que inspiraram o Praesidium da Convenção. Talvez por isso seja tão ingénuo na ambição omnisciente que caracteriza as suas 500 páginas. Este TCE representa, afinal, as prioridades da vanguarda burocrática europeia. E essas não têm que ser as prioridades da União, porque a união não são as instituições de Bruxelas, mas os milhões de cidadãos dos estados-membros. Muitos criticaram o voto dos francesesm considerando-o unilateral, por reprovar o tratado tendo em conta a França e esquecendo o resto da união. Mas não esqueçamos que a própria Comissão procura impor a sua agenda, como fez Romano Prodi, ao ameaçar o Reino Unido, a fim de pressionar o governo de Blair a ratificar o TCE sem referendo.
A União Europeia, se caminhar para o federalismo, deverá continuar pelo trilho menos directo mas mais frutuoso das pequenas negociações, dos avanços e compassos de espera. A Comissão não deverá impor uma agenda própria, mas negociar uma agenda da União, isto é, uma agenda concertada pelos estados-membros.
Os poderes estabelecidos no tratado são confusos.
Entre o Presidente do Conselho e o Presidente da Comissão surgirá, inevitavelmente, o choque (o que, por si só, não seria mau) e, provavelmente, o conflito (o que seria terrível). O fortalecimento da Comissão só pode dar-se se não se der um enfraquecimento dos estados no Conselho. Mas terminar com a unanimidade e aumentar os poderes da Comissão (em que nem todos os comissários têm direito de voto), pode significar a exclusão dos pequenos países das decisões relevantes.
A alternativa para o aprofundamento da União deverá passar, obrigatoriamente, por dois aspectos: uma liberalização da Europa (reduzindo as competências da burocracia europeia); uma democratização das instituições, cujo motor pode ser um verdadeiro Parlamento Europeu, cujos deputados sejam responsabilizados perante os eleitores e se vejam confrontados com escolhas mais relevantes que a homogeneização das dimensões dos preservativos ou a proibição das colheres de pau nos restaurantes!
Há aspectos positivos no TCE, que convém louvar. Após toda a regulamentação burocrática poderá restar algum espaço para os aspectos de liberdade económica propostos pelo texto, que poderiam introduzir alguma lucidez na política económica dos estados-membros (particularmente os dos países ocidentais), cujo apego ao “modelo social europeu” coloca em risco não apenas esta geração, mas o futuro da Europa.
Em jeito de conclusão, recordaria um texto notável que Pacheco Pereira escreveu há dois anos (foi coincidência), e que resume, em meu entender, o que há a dizer sobre o TCE:
A maioria dos europeus não é maçónica, muitos não são sequer republicanos, muitos consideram que antes do cidadão está "a persona" e esta remete para valores transpolíticos de carácter religioso, bastantes vivem em estados onde há "religiões de Estado". Isto é que é verdadeiramente a Europa, a grande Europa, a Europa que forjou uma cultura europeia de diversidade e confronto, de diferenças e tradição. A Europa do "preâmbulo" é uma pequena Europa, sectária, que reduz em vez de enriquecer. Por estas e por outras, é que não desejo uma Constituição Europeia que me obrigue a ser o que não sou.
(Pacheco Pereira, Público, 5.VI.2003)
O texto tem a sua história. O Praesidium da Convenção que estava encarregue de redigir o TCE recusou a referência ao cristianismo, substituindo-a pela curiosa expressão de “elã espiritual” europeu. Por contraste, a referência às luzes era explícita. Ora, quando muitos autores contestaram a exclusão do cristianismo, mais que advogar um retorno à teocracia – quem vê em Pacheco Pereira um miguelista? – pretendiam chamar a atenção para a parcialidade do projecto do TCE, que acabaria por obrigar os europeus a serem aquilo que eles não são e a transformar a Europa naquilo que ela não é!